Dragon Quest : A história de desenvolvimento de uma lenda
Poucas franquias possuem uma influência tão grande que são capazes de definir as raízes de um gênero por conta própria. Dragon Quest é uma delas. A franquia não só adaptou para um ambiente eletrônico as mecânicas dos Role-Play Games, como Dungeons & Dragons, como os fez com tanta perfeição que tudo o que veio depois dela é uma tentativa de reimaginar suas mecânicas.
Quando olhamos para o mercado ocidental, percebemos que é um cenário onde a franquia passou batida. Final Fantasy carrega o reconhecimento de ser uma das grandes franquias de J-RPG, enquanto Dragon Quest avança pouco a pouco no carinho dos fãs ocidentais, apesar deste reconhecimento só vir cerca de quarenta anos depois.
A criação da Enix
O nascimento de Dragon Quest possui uma ligação quase que visceral com o nascimento da própria Enix (nome de solteira da SquareEnix). O livro Power-Up: How Japanese Video Games Gave World an Extra Life (em tradução, Power-Up: Como os videogames japonês deram ao mundo uma vida extra) existe um capítulo a respeito dos J-RPGs. O quarto capítulo chamado Quests and Fantasies : Japanese RPG, nos revela um pouco sobre a história da Enix.
De 1975 até 1982, a Enix era na verdade uma editora de revistas tablóides voltada ao mercado imobiliário. Frente ao fracasso se não ter conseguido levar suas publicações a um patamar nacional, Yasuhiro Fukushima, fundador da empresa, decidiu pegar o dinheiro que ganhou com as publicidades e mudou drasticamente de ramo. Escolheu apostar suas fichas no mercado de desenvolvimento de software para computadores, em especial no ramo de jogos eletrônicos.

Em busca de talentos Fukushima promoveu um concurso chamado Enix Game Hobby Program Contest, o qual vinculou em diversas revistas com foco em mangá e tecnologia. O prêmio, um milhão de ienes, seria entregue a três finalistas. Os vencedores foram Kazuro Morita, Koiichi Nakamura e Yuji Horii. Este último, submeteu ao concurso aquele que seria o primeiro jogo oficialmente publicado pela empresa, Love Match Tennis, em 1983.
Nascimento de Dragon Quest
Alguns anos depois, Koiichi Nakamura e Yuji Horii receberam a tarefa de portar um jogo da autoria de ambos, Portopia Renzoku Satsujin Jiken (O caso dos assassinatos em série de Portopia), para o Famicom. Durante a reprogramação do jogo, ambos entraram em contato com os jogos baseados em RPG feitos para o Famicom/NES na América, Ultima e Wizardry. Ambos os títulos diretamente influenciados pelo famoso RPG de mesa Dungeons & Dragons.

A complexidade dos títulos impressionou ambos os programadores, que eram grandes aficionados por computação. Contudo, perceberam que o jogo não era amigável para o público em geral. Até 1985, poucas pessoas possuíam computadores pessoais em casa, o que fazia de jogos como este extremamente inchados e feitos para um público alvo específico. Com a chegada do Famicom que causou uma febre no mundo todo por conta de Super Mario Bros. (1985), um público muito mais amplo estava tendo acesso aos jogos eletrônicos.
Yuji Horii começou então a desenvolver um projeto que visava simplificar estes sistemas para o público geral. Passando por questões técnicas, como por exemplo apresentar ao jogador que o personagem em tela era uma representação do próprio jogador, introduzindo o clássico menu de “adicione seu nome”. Criando um sistema intuitivo de experiência, acúmulo de dinheiro e melhoria de armamentos. Passando também por aspectos comerciais.
Yuji Horii queria que o novo jogo tivesse apelo com o público japonês, para isso, entrou em contato com um velho conhecido da Shonen Jump, que ganhou certa fama com o mangá Dr. Slump e estava tentando emplacar uma nova série (até hoje desconhecida do grande público) chamada Dragon Ball. Akira Toriyama (1955 – 2024) recebeu a missão de esboçar o visual deste novo jogo, imprimindo assim um visual familiar vindo dos mangás a esta aventura.

Por último, mas não menos importante, Koichi Sugiyama. Músico com formação clássica que havia ganhado bastante notoriedade ao participar de programas televisivos, além de ser um grande entusiasta de jogos eletrônicos. O próprio havia enviado uma carta para os escritórios da Enix, pedindo o lançamento de um jogo de Shogi (Xadrez japonês). Ao ler esta carta, um dos produtores da Enix teria ligado para confirmar se aquele era o mesmo Koichi Sugiyama da TV e prontamente o convidou para participar do novo projeto que estava sendo desenvolvido. O qual aceitou fazer parte de bom grado.
História
O primeiro título da franquia foi lançado oficialmente no dia 27 de Maio de 1986. Para o Famicom, apenas em 1989 o título recebeu seu lançamento da América, sob o nome de Dragon Warrior, por conflitos envolvendo direitos autorais.
Em um passado distante, ás terras de Alefguard foram tomadas pela escuridão. Porém, o lendário guerreiro Loto derrotou o Rei Maligno e o selou com a esfera da luz, que recebeu diretamente dos Deuses. Larus I ficou encarregado de cuidar da esfera da luz e paz voltou a reinar na Terra desde então.
Na época de Larus XIV, o castelo foi invadido pelo Rei Dragão que roubou a esfera da luz. O mundo novamente foi tomado pelo caos e pela escuridão. Os monstros estavam novamente andando sobre a Terra, os campos que antes encantavam os andarilhos, agora se tornaram pântanos venenosos.
Dizem as más línguas que cidades estão sendo atacadas e tomadas por monstros, alguém precisa devolver a paz para Alefguard. Muitos heróis arriscarram suas vidas contra o Rei Dragão, mas nenhum voltou. Dessa forma, um bom tempo se passou.
De acordo com o vidente Mushiheta: ‘Em algum lugar desta terra, aquele que herdou o sangue do lendário herói loto irá surgir. Ele irá derrotar o Rei Dragão.’
Jogabilidade
Após uma belíssima marcha que abre as alas para um novo herói, Dragon Quest apresenta uma tela para que o jogador insira seu nome. A partir daí, o jogador passa a encarnar descendente de Loto que as profecias haviam pressentido seu surgimento. O primeiro herói da saga Dragon Quest não possui um nome, sendo apenas conhecido por descendente de Loto. Essa escolha narrativa reflete justamente a escolha de Horii em explicar de maneira simples para que jogador é quem vive o herói da história.
A primeira versão de Dragon Quest, lançada para o Famicom, é extremamente simples, ao ponto do personagem não ter diferentes sprites para a direção na qual ele se mexe. O personagem está sempre olhando para a frente. Hoje a escolha parece estranha, mas considerando as inspirações de Horii não é difícil imaginar que o personagem se mova assim para emular a sensação de mover um peão sobre um grande tabuleiro.

A inspiração vinda de jogos point-and-click também é notável. Todas as ações neste primeiro título são feitas através de um pequeno menu que aparece no canto superior esquerdo da tela. Abrir portas, selecionar equipamentos, averiguar os status, e até mesmo descer escadas são ações ativadas unicamente através do menu.
Como mencionado, o sprite do personagem em tela olha fixamente para uma direção, portanto para falar com NPCs ou abrir portas é necessário também selecionar a posição em que o objeto de interação está localizado: norte, sul, leste e oeste. Apesar de esquisito, o sistema é uma mão na roda na hora de pegar dicas com os moradores da vila, que geralmente explicam que um local está a norte ou a sul de outro. Ou seja, serve também como uma bússola.
A primeira tela do jogo, que parece um grande caixote, é na verdade uma sala do trono do rei de Radatomu e ali mesmo o jogo apresenta as principais mecânicas de exploração. A porta está trancada e há um baú, explorando eventualmente o jogador irá encontrar uma chave e usá-la para abrir a porta e descer as escadas. Novamente, o design simples elaborado por Yuji Horii aplicado com perfeição.
Ao sair desta sala, o rei nos revela sobre o roubo da esfera da luz e conta também que a princesa foi raptada e está sendo mantida prisioneira nas masmorras por um Dragão. A missão do herói é, então, salvar a princesa e derrotar o Rei do Mal.
Evolução do personagem
A partir daí o jogador é liberado para partir em sua aventura. O primeiro Dragon Quest se passa em um mapa pequeno, em relançamentos do título é possível terminá-lo em menos de duas horas. O jogo original ganha algumas horas a mais graças a necessidade de acumular experiência derrotando inimigos pelo mapa.
Durante o jogo todo, apenas um personagem é controlado, simultaneamente, todas as batalhas são apenas contra um inimigo, enfrentados em batalhas por turno. O personagem controlado avança em força durante toda a aventura, em especial, usando a experiência obtida e o dinheiro para comprar armaduras mais fortes, além de um ou outro equipamento que pode ser encontrado explorando as masmorras.
Outra parte importante da jogabilidade são as mágicas, sendo usadas para alterar status do personagem ou inimigos, atacar ou defender, mas principalmente. O centro desta aventura é o reino de Radatomu, ou Tangeel na versão americana. É possível sempre voltar para falar com o rei e salvar a sua aventura. O rei dá informações sobre o nível do personagem, quanta experiência falta para alcançar o próximo e termina recitando uma magia para o personagem.
A magia recitada pelo personagem, na primeira versão do jogo, é a senha com o progresso salvo até ali. Nas versões subsequentes que vieram posteriormente, a senha é trocada por um save.
Outro grande trunfo narrativo que posteriormente virou marca da série, é a escolha de se juntar ao vilão. Após passar por todo o jogo e adentrar o covil do Rei Dragão, o mesmo reconhece o esforço do herói e o avalia como um grande aliado para seu exército. Antes da batalha final, ele oferece ao jogador a possibilidade de aceitar participar de seu exército, ou não. Resultando em finais diferentes para a aventura.
Dragon Quest : Recepção
Apesar da influência por trás do título, a verdade é que o primeiro título não chegou ao sucesso que a marca iria alcançar em alguns anos no futuro. A revista recém fundada Famitsu, a época de publicação quinzenal e ainda chamada de Famicom Tsushin, publicou nos seus primeiros números alguns artigos de poucas páginas voltados ao jogo. Inclusive, figurando no Top 5 de melhores jogos da plataforma, segundo a votação dos leitores nestas primeiras edições, porém caindo em popularidade com o tempo. Contudo, o jogo foi ganhando muita popularidade no final daquele ano, e em uma das edições da revista de janeiro de 1987, aparece com a marca de impressionantes 11 mil votos dos leitores. Marca que deixou para trás até os títulos mais famosos da plataforma.

Graças ao alcance deste primeiro título, a equipe conseguiu influência suficiente para lançar uma sequência. No dia 26 de Janeiro de 1987, menos de um ano após o primeiro título, é lançado Dragon Quest II : Akuryou no Kamigami, cujos protagonistas são os descendentes do descendente do Loto, mas essa história fica para outro momento. Por enquanto, clique aqui e conheça um jogo que foi bastante influenciado por Dragon Quest.
Material Referencial
Power-Up: How Japanese Video Games Gave World an Extra Life – Cap 4. Quests and Fantasies : Japanese RPG – Páginas 84 à 87
BIWEEKLY FAMITSU TSUSHIN – Edições 1 à 4 e 12


