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Como Castlevania consagrou Drácula na história dos games

Próximo à virada do século XIX para o XX, o escritor irlandês Bram Stoker publicou um trabalho que após sua morte teve grande influência sobre as mídias que ainda estavam para nascer. Drácula (1897) é um romance gótico inspirado em lendas do folclore europeu. Em especial, pela cultura e história da Transilvânia, uma região da Romênia.

Na verdade, a história escrita por Bram Stoker fora considerada um fracasso a época e seu romance mais fraco. Por um curto período a história de Drácula estava fadada ao esquecimento. Ainda sim, graças a certos desintendimentos envolvendo direitos autorais a obra ganhou fama póstuma.

O reconhecimento da obra só chegou com o advento do cinema. Quando os irmãos Lumiére realizaram as primeiras apresentações das gravações realizadas com seu cinematógrafo em 1899. Não demorou muito até que essa tecnologia começasse a se expandir pela Europa. Diversas pessoas começaram a experimentar as mais diversas ideias frente à câmera.

À medida que os filmes começaram a ganhar maiores durações, houve uma busca por contar histórias diversas. Muitos dos diretores da época buscaram inspirações em histórias bíblicas, contos épicos e até mesmo em histórias contemporâneas. Em uma de suas buscas por inspiração, o diretor alemão F. W. Murnau, acabou se afeiçoando pela história de Bram Stoker e decidiu usar como base para a produção de um filme.

A briga judicial que revelou Drácula ao mundo

Na época, Bram Stoker havia falecido. Quem cuidava dos direitos de publicações de seus livros era sua esposa, que não concedeu o uso dos direitos autorais do personagem. Sem os direitos dos personagens, porém com vontade de contar aquela história, Murnau descaradamente modificou o nome dos personagens e fez leves alterações em sua história. Em 1992, o cinema alemão recebe as primeiras exibições de Nosferatu.

Nosferatu (1922) foi responsável também por inumeros efeitos visuais que deram forma ao gênero de terror no cinema

Nosferatu provavelmente foi um nome retirado do próprio livro, quando o doutor Van Hellsing faz menção ao poder do Drácula. Até hoje o título é um marco do cinema mudo, em especial, por ser um dos títulos mais influentes do expressionismo alemão. Graças às mudanças de roteiro, houve um mal entendido com o final que alterou o entendimento dos vampiros para sempre.

Ao final, o Conde Orlok (versão pirata do Conde Drácula) morre. Em simultâneo o sol nasce em uma metáfora a derrota das trevas. Foi este filme que adicionou no imaginário popular a ideia de que vampiros morrem ao entrar em contato com a luz do sol, algo que não estava presente no texto original de Bram Stoker.

Quando o filme lançou e a esposa de Stoker ficou sabendo a respeito, fez o possível para acionar judicialmente Murnau por plágio. Graças a essa batalha judicial o livro acabou ganhando fama e conseguindo sua publicação em outros países. Por ser um romance em língua inglesa não foi difícil sua venda na América, o qual serviu de inspiração para inúmeras peças de teatro e broadway.

Não demorou muito para que um dos maiores estúdios da América, a Universal, se interessasse em adquirir os direitos autorais para realizar um novo filme. Nessa busca, acabaram por descobrir que Bram Stoker não realizou corretamente os processos para garantir os direitos do personagem e o mesmo acabara de cair em domínio público, brecha a qual a produtora utilizou para enfiar o Drácula em seus mais diversos projetos.

Ao contrário da visão monstruosa criada por Murnau, a caracterização de Bela Lugosi da lugar a um Drácula com um ar de aristócrata e certa sensualidade, mais fiel a representação do livro.

Drácula (1930) dirigido por Tod Browning é o filme mais marcante da trajetória do vampiro pelo cinema. Em especial pela caracterização do ator Bela Lugosi. O mesmo era conhecido por interpretar o Conde em peças pela Broadway. Graças a ele a imagem de um Conde Drácula extremamente cordial e vestido com um longa capa preta adentrou o imaginário popular.

Influências que moldaram Castlevania

Daquele momento em diante o Drácula, graças ao alcance da produtora se tornou uma espécie de ícone da cultura pop, sendo porta de entrada para diversas outras adaptações de filmes de terror da mesma. Entre elas, algumas que se destacam aqui são a Múmia (1932) e Frankenstein (1931). Ambos os monstros de suas respectivas histórias foram interpretados pelo ator Boris Karloff. Outra figura importante para a construção da imagem do Drácula foi o Christopher Lee que, em 1958, pela primeira vez apresentou uma versão mais sangrenta do personagem.

Extremamente inspirados por estes e outros filmes, uma equipe da Konami liderada pelo diretor e programador Hitoshi Akamatsu, foram responsáveis por criar uma grande homenagem a estas histórias com Akumajou Dracula, ou para nós, Castlevania. A influência é tão clara que o nome de atores e atrizes são referenciados nos créditos, com pequenas variações. É possível notar menções a Christopher Bee, Belo Lugosi, Boris Karloffice como Drácula, Morte e Frankenstein respectivamente, além de outros nomes marcantes como Love Chaney Jr. e Love Chaney, referência aos atores Lon Chaney Jr. e seu pai Lon Chaney, que viveu inúmeros monstros do cinema de terror, como o Fantasma da Ópera (1925).

Interessante perceber que essas influências foram basilares para todo entendimento da lore de Castlevania nos dias de hoje. O próprio castelo do Drácula, descrito dentro do livro original como um lugar misterioso e sombrio, é palco apenas dos primeiros atos. Contudo grande parte da sua história na verdade se passa fora do castelo, pois o interesse do Drácula na obra original é vendê-lo e mudar-se para Londres.

Com esse jogo, assim como em quase todo o resto da série, o castelo torna-se quase um personagem tão importante quanto o próprio Drácula. Sendo isso provavelmente vem de uma tentativa de recriar os primeiros momentos do advogado Jonathan Harker quando visita o castelo. Seria curioso também notar o quanto a torre no qual o Drácula se encontra ao final do jogo se assemelha em formato ao famoso relógio Big Bang. Uma possivél referência ao desejo do personagem no romance de se mudar para Londres.

A última fase do jogo retrata a escalada em uma torre do relógio cujo visual se assemelha ao Big Bang. Em títulos futuros o cenário da torre do relógio se tornou quase que obrigatório. Quase uma marca da franquia Castlevania.

Akumajou Dracula estreiou inicialmente para o Famicom Disk System. Sistema de leitura de jogos em disquetes que ficou apenas no Japão. Em 1986, um ano depois, lançado como Castlevania na América. No nome original, alterado graças à política de publicação de jogos da Nintendo of America que não permitia menções a religião, Akuma pode significar Demônio/Diabo e Jou é um sufixo que significa castelo. 

O início da batalha entre os Belmont e o Drácula

De acordo com o manual japonês: “Em um pequeno país chamado Transilvânia, no interior da Europa, é contada uma lenda sobre o Drácula.”

“O rei do mal Drácula renasce uma vez a cada cem anos, quando o poder de Cristo se enfraquece no coração dos homens e estes são tomados pelo mal. A cada reencarnação seu poder maligno aumenta.”

“Em algum momento no passado Drácula ressurgiu, porém seus planos de cobrir a terra com nuvens negras e governá-la foram interrompidos por Christopher Belmont, que em uma batalha mortal o colocou em sono profundo pelos próximos cem anos.”

“Na noite de páscoa, enquanto era realizado um grande carnaval para celebrar a ressurreição de Cristo, nos escombros que ficavam nos limites da cidade, seguidores de uma seita maligna ofertaram seu sangue aos restos mortais do Conde Drácula e deram início a uma missa macabra.”

Após isso, nuvens tomaram rapidamente conta da cidade e o caos trazido pelo Conde Drácula estava presente outra vez neste mundo.”

“Para livrá-los deste mal, o herdeiro da família Belmont, o jovem Simon Belmont, com o chicote que recebeu de seu pai, adentrou o castelo de Drácula para derrotá-lo.”

Texto traduzido e adaptado diretamente do manual japonês

Essa introdução definiu toda a base da franquia até os dias de hoje. Desde o primeiro jogo existem menções a respeito do ritual para reviver o Drácula, o qual ocorre em momentos que o coração dos homens é tomado pelo mal. Além da batalha que atravessa gerações entre o Drácula e a família Belmont. Outro ponto importate é a definição do Conde Drácula como Maou, que traduzido literalmente significa Rei Maligno ou Rei do Mal, o que justifica o fato de ele possuir um exército de seres malignos a sua disposição.

Castlevania, assim como a própria história do Drácula, é tomado por referências ao imaginário cristão católico e ortodoxo. Incluindo o fato de que este primeiro jogo ocorre em uma noite de páscoa, inclusive, fazendo menção ao carnaval, além de itens presentes como a cruz, água benta e o rosário. Com todo este plano de fundo, podemos finalmente falar a respeito do jogo em si.

Influências literarias e cinematográficas

Uma das cenas mais marcantes da franquia provém justamente do início desse jogo, com a chegada do Simon à porta do castelo do Drácula, que entrega uma dinâmica cinematográfica que este jogo pretende ter. Após isso, estamos no pátio do castelo, momento pro jogador apertar os botões e entender como eles respondem. Interessantemente, essa entrada cheia de velas postas próximas umas às outras, parece fazer menção a um dos relatos de Jonathan Harker, em que enquanto está sendo levado em uma carruagem para o Castelo do Drácula relata ter visto diversas luzes no caminho. 

O início de Castlevania é bastante didático em suas mecânicas, mostrando já de cara como funcionam as melhorias para o chicote, os corações e o acesso a primeira sub-arma do jogo. Adentrando o castelo inicia-se o ataque por uma horda de zumbis, morcegos e gatos pretos. No total o jogo possui seis estágios, cada um dividido em três sessões, ou melhor, em três atos, uma forma de contar histórias muito utilizadas em diversas mídias, que se divide em uma estrutura básica de introdução, desenvolvimento e conclusão. Sendo este último ato a batalha com cada um dos chefes.

Em especial, cada um dos chefes faz menção a monstros da literatura e do cinema. Entre eles o mais deslocado para ser o morcego que aparece no início, nos créditos do jogo o vampiro aparece creditado como Mix Schrecks, que por sua vez é referência a Max Schreck, ator que deu vida ao Conde Orlok\Nosferatu, mencionado anteriormente.

Ainda assim, não sai da minha cabeça que possa ser uma referência a um filme levemente desconhecido, estrelado também por Bela Lugosi, chamado de The Devil Bat (1940). Nessa obra o personagem interpretado pelo mesmo é um cientista que trabalha para um empresa de cosméticos. Revoltado por não ter seu trabalho reconhecido cria um robô gigante para assassinar os donos dessa empresa. 

A segunda fase é conta com a presenta da Medusa, diretamente da mitologia grega, mas apenas sua cabeça. Nas histórias da mitologia grega a mesma foi decapitada pelo herói Perseu. Nos créditos aparece o nome Barber Sherry, porém não consegui identificar por conta própria a quem se refere este nome. Na fase seguinte, estão presentes duas múmias creditadas por Love Chaney Jr., em referência ao filho do ator de mil faces, Lon Chaney. Dentre os seus papéis marcantes está o lobisomem, em The Wolf Man (1941), que não chega a dar as caras neste jogo. 

A caracterização de Boris Karloff para o monstro criado pelo Dr. Henry Frankenstein é até hoje, quase cem anos depois a imagem mais forte criada para o personagem.

Após uma queda para o abismo, o próximo chefe é, na verdade, um dupla formada por um corcunda e pelo monstro de Frankenstein. Ambos são aparecem nos créditos como Love Chaney e Boris Karloffice, em referência aos atores Lon Chaney e Boris Karloff. No cinema de terror dos anos 30 deram vida tanto ao Corcunda de Notre Dame (1923), quanto ao monstro de Frankenstein respectivamente.

O manual da versão americana diverge em relação ao nome deste corcunda que aparece junto ao Frankenstein. Onde ele atende por Igor, que por sua vez é um personagem do filme Son of Frankenstein(1939). O personagem controla o monstro na busca de vingança contra a família do Dr. Henry Frankenstein, no filme Igor, ou Ygor, é interpretado por Bela Lugosi.

Para finalizar as menções ao cinema, temos a Morte como Belo Lugosi. Sendo potencialmente a única menção sem algum sentido real, além da menção ao nome do ator. Por fim, Christopher Bee, uma clara menção ao ator Christopher Lee, principal imagem do Drácula durante os anos 50 e 60. Além dessas é possível captar algumas outras poucas referências, The Black Cat (1934), estrelado por Bela Lugosi e Boris Karloff, e Creature from the Black Lagoon (1954). Ambos parecem ter influenciado o design de alguns inimigos presentes no jogo.

Desnvolvimento e jogabilidade

Muito pouco se sabe sobre a vida de Hitoshi Akamatsu, por muito tempo seu nome esteve oculto dos fãs. O pouco detalhe que existe a respeito do mesmo foi revelado a partir de detalhes dados por outros membros da Konami que trabalharam com ele na produção da trilogia de Castlevania. Entretanto, não seria difícil supor que se ele ainda estiver vivo, provavelmente deve ter alguma conta no Letterboxd. Grande parte dos filmes citados pertencem à era de ouro do cinema de terror e merecem ser apreciados individualmente. Aos que possuirem interesse, aqui está uma lista individual dentro do Letterboxd com estes filmes. Por último, mas não menos importante, o chicote é inspiração direta de Indiana Jones.

Clareadas todas as referências cinematográficas, acredito que possamos comentar duas linhas a respeito da jogabilidade e apresentação do jogo. Em 1986 boa parte da indústria dos jogos que conhecemos hoje ainda estava em estágio embrionário e num ambiente lotado de jogos com uma carga infantil e coloridos. É impressionante a apresentação de um projeto como Castlevania que uma visão gótica e sombria. Ainda que não seja exatamente assustadora é um diferencial enorme para a época. Um trabalho em especial visto nos backgrounds desse jogo, que merecem um pouco de atenção o quão bem feitos são.

Vale lembrar que Super Mario Bros. (1985) lançou um ano antes contendo como background cores chapadas. Outra menção importante é a respeito das composições da música do jogo que são fundamentais para criar a ambientação. Informação sobre a equipe que trabalho nestes jogos são escassas, porém, são responsáveis pelas músicas: Kinuyo Yamashita, Satoe Terashima eHidenori Maezawa.

Anúncio do jogo na revista japonesa Famitsu, publicado em 1986

Quanto a jogabilidade, existem poucas críticas a este jogo que realmente se justifiquem como problemas exclusivos, boa parte são questões inerentes a época de produção. A dificuldade deste título pode vir a ser um empecilho para novos jogadores. Ainda que seja um jogo curto e relativamente fácil de dominar.

A dificuldade e o “knockback

A luta contra o monstro de Frankenstein e Ygor, é potencialmente a mais difícil de Castlevania, em especial pois caso perca a luta o jogador retorna a ela com menos poder do que aquele no qual o que ele entrou, em especial graças ao padrão errático que o Ygor possui. Comparado com a movimentação travada do Simon, se o jogador não conseguir o travar em um ponto específico certamente vai ter dificuldades para passar de lá. Quanto aos outros inimigos é uma questão de testar quais subitens possuem um maior efeito, o que pode levar um tempo.

Uma maldição da qual a maioria dos Belmont parecem sofrer é o chamado “knockback”, que empurra o personagem para trás quando este toma dano. A mecânica parece criada para gerar uma certa dificuldade e manter o jogador atento para as sessões de plataforma. Entretanto, são raros os momentos em que o jogador se encontra em cenários cheios de buracos que gerem morte injustas neste título. Outros títulos da franquia Castlevania não souberam lidar corretamente com a mecânica.

Ao final de tudo, o jogador encontra com Drácula, sua cabeça voa e seu corpo se explode, dando lugar a um segundo monstro. Na visão do diretor, a explosão do corpo do Drácula é um anúncio de que ele iria voltar, mas o mal sucumbiu. O segundo monstro seria não mais o Drácula, mas sim a encarnação da maldade presente no coração dos homens. Após derrotá-lo, o castelo vai abaixo, deixando apenas seus escombros. Apesar disso, a história ainda não terminou.

Na época em que Castlevania foi lançado as equipes criativas não eram creditados nas obras. Era comum o uso de pseudonimos. Devido a isso, por muito tempo a equipe que trabalhou nestes primeiros títulos da franquia ficou totalmente desconhecida

Matérial Referêncial

  1. Plagerism Today: Dracula vs. Nosferatu a True Copyright Horror Story
  2. Shumplations : Castlevania Developer Commentary
  3. Mobygmes: Castlevania (1986) – Nes Credits
  4. Famicom Hissatsuhon (1986) Vol. 9

5 1 voto
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3 dias atrás

[…] seu corpo se parte e se espalha pela terra anunciando um possível retorno do vampiro. Em uma postagem anterior, comentei um pouco a respeito das influências que compõe […]

Samira
Samira
2 dias atrás

Baita análise bem fundamentada, parabéns!

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